Rabiscos

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

    Oi gente como estão? Nossa quanto tempo hein?Peço desculpas pela minha ausência, mas estava assoberbada de tarefas criando coisinhas novas. Dê uma passada lá galeria e veja o que andei produzindo, e claro, deixe a sua opinião.
    Neste semestre, trabalhei bastante com a gravura em metal e com o pastel seco, minhas duas paixões. 
    As obras produzidas fazem parte de uma linguagem que venho desenvolvendo, do qual dialogam com a minha temática: dor cotidiana. Vou colocar aqui uma parte de meu trabalho escrito, onde explico isso melhor (veja as imagens da qual me refiro na galeria, ok?). 


UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Instituto de Artes
Departamento de Artes Visuais










Antagonias





Trabalho apresentado como pré-requisito parcial para conclusão da disciplina Ateliê II do curso de bacharelado em Artes Plásticas.
Professor: Dr. Nelson Maravalhas Júnior



Naiara Medeiros Coelho
2006/92310








Brasília – DF





Introdução

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa, ainda em desenvolvimento, iniciada em 2010, relacionado ao meu processo imagético e de desenvolvimento de minha linguagem artística. Desde lá, tenho percebido inúmeras transformações até alcançar resultado atual. Procurarei, dessa forma, retratar cada uma destas etapas, assim como apresentar e discutir as obras decorrentes desta pesquisa.
 A “dor” foi a temática escolhida e que me conduziu a inúmeras descobertas e reflexões. Atribuo essa escolha por ser um assunto em que domino com autonomia, uma vez que sou portadora de síndromes dolorosas (fibromialgia e endometriose), de modo que há dez anos vivencio a dor física cotidianamente.  
Entendo a temática, no entanto, como sendo apenas um “meio” que norteou o caminho do qual deveria conduzir meu processo imagético. Porém busco para o desenvolvimento de minha linguagem deixar livre a fruição do público diante da obra. Mas, de que maneira poderia criar essa ressonância e interesse no público? Como desvendar meu próprio universo? E como desenvolver minha própria identidade, meus próprios conceitos, que posteriormente viriam a completar a minha obra? Como desenvolver uma identidade plástica, uma linguagem?
 Eis ai o desafio que nós, alunos do professor Nelson Maravalhas Júnior, na disciplina de Ateliê II, tivemos ao longo deste semestre: desenvolver um conjunto de obras na qual esta linguagem artística pudesse apresentar-se. Dessa forma, as quatro pinturas (pastel a seco) e as oito calcogravuras citadas ao longo deste trabalho resultam desse processo de pesquisa. 

Um Universo Se Descortina

“Tomando em sua mão algumas sobras do mundo, o homem pode inventar um novo mundo que é todo dele. A arte começa pela transmutação e contínua metamorfose (...)”.
Fascillon


A busca por uma linguagem ou identidade visual levou-me a muitas reflexões e descobertas. O primeiro passo foi a aceitação, posteriormente a transmutação, uma vez que retratar minha própria dor, um universo tão íntimo, ainda que simbolicamente, não foi tarefa
fácil. Trata-se de longo processo, pois, até então, havia resistido adotá-la como temática. Alguns especialistas, como Fleming (2003), relatam que a dor física acarreta conjuntamente a dor emocional; esta, sob minha ótica, é ainda mais difícil de transpor criativamente.

A dor não se deixa aprisionar no corpo, implica o homem em sua totalidade, sendo um fato existencial, além de fisiológico (...) Esta pressupõe organizações psíquicas internas e modalidades específicas de lidar com a dor, que pode ir da capacidade de contê-la mentalmente, de elaborá-la, a necessidade de expulsá-la, de negá-la, de desprezá-la. É uma experiência ao mesmo tempo universal e singular.

Possivelmente isso explique o fato de eu ter preferido mantê-la inviolável, por um longo período, durante minha vida acadêmica. No final do ano de 2010, contudo, ao iniciar a disciplina de Ateliê I, o professor Nelson Maravalhas deparou-se com meus trabalhos. Algumas gravuras em metal, cuja temática julgo hoje superficial, retratavam temas como a cultura gaúcha e bailarinas, além de muitos esboços para ilustrações infantis, assunto que até então me ocupava (desde a disciplina de Projeto Interdisciplinar). No entanto, ainda neste período, aconselhada pela professora Luisa Günther, passei a adotar o diário de artista, para anotações e esboços.
Nesses diários foram surgindo alguns escritos, lampejos de ideias daquilo que viria a ser o meu tema atual: a dor. Observando isso, o professor Nelson Maravalhas, na disciplina de Ateliê I, do qual apenas cursei algumas aulas em 2010, sugeriu-me que fizesse o seguinte exercício: sentar-me empunhando um lápis e papel a fim de “deixar vir” as imagens do meu inconsciente, tal como uma criança o faz, ou seja, descompromissadamente. Infelizmente, em tal ocasião, necessitei trancar o semestre, devido aos problemas de saúde já citados.
Não tenho dúvidas, contudo, de que este período de recolhimento foi de extrema importância para meu amadurecimento artístico. Uma vez que me encontrava em pleno contato com a dor física e psicológica, enquanto estive hospitalizada, procurei fazer diariamente tal exercício, como sugerido pelo professor. Para minha surpresa, imagens surpreendentes começaram a surgir. Eram imagens do meu interior, algumas também continham escritos que as complementavam. Durante o período de convalescência, dediquei-me a amadurecer e investigar todo este universo mergulhando em meu próprio processo imagético, exercitando a prática do desenho.
 Freud (1915, apud PASTORES, 2009) afirma em sua obra O Inconsciente que podemos perceber, com certa facilidade, as nossas emoções, mas que possuímos sentimentos a respeito que nada, ou pouco, conhecemos. Num registro estético, podemos entrar em êxtase diante de uma obra, quer seja um filme, uma música, um quadro, um romance, uma conversa, tomados por uma emoção estética, porém o sentimento estético só emergirá após um processo de elaboração acerca do significado de uma dada obra para cada observador.
Possivelmente é por isso que tenha necessitado desse tempo de reflexão e amadurecimento, para só então perceber que as minhas experiências com o corpo, com a dor e com todas as sensações por ela ocasionadas poderiam ser fonte inesgotável à minha criação.
  Da mesma forma que Freud, Rilke (1980, p. 82, apud SALLES, 1998, p. 84) também fala sobre a importância desse tempo no amadurecimento do artista: “deixar amadurecer inteiramente [...] só isto é viver artisticamente na compreensão e na criação. O tempo não serve de medida-ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer. Como árvore que não apressa a sua seiva. Aprendo diariamente: a paciência é tudo”.
Ao perceber que muitas destas imagens que começavam a surgir traziam à tona a minha dor física, porém, de maneira onírica, simbólica e, até mesmo, fantástica, constatei que não só tinha alcançado o objetivo do exercício proposto pelo professor (“destravar” a imaginação e fazer emergir o que havia em meu inconsciente), mas, também, foi como se naquele momento eu me apropriasse de minha própria identidade artística que viria a desenvolver-se.  
                                                             

Encontrei, assim, a minha temática, ou seja, o caminho pelo qual deveria seguir, para desenvolver a minha linguagem. Pois, enquanto estivera desenhando bailarinas, gaúchos e ilustrações infantis, era como se eu estivesse desenhando o meu exterior (Figuras 1 e 2). A partir desse encontro com a minha identidade, tornei-me apta para a busca de uma linguagem mais intimista e amadurecida.

Duplicidades e “Antagonias” – O Tema

“Ao artista resta ver se está no interior da obra, fazendo-a de dentro para fora, conferindo se nela está registrada a força que pretendeu calcar. Dai a obra conter em si a tenacidade e o abandono.”
Maria do Céu Oliveira

 Convencida de que o artista precisa se colocar verdadeiramente, na sua obra, estou certa de que não havia nada mais autoral do que a dor. No entanto, tratar dessa temática não seria tarefa das mais fáceis. É preciso muita cautela para abordá-la, pois entendo que existe uma linha muito tênue entre aquilo que pode ser considerado Arte, para mim, daquilo que poderia ser interpretado pelo público como Arte-Terapia.
 Além disso, tenho experimentado, ao longo destes dez anos, que a dor é tratada de maneira muito ambígua pelas pessoas, de modo geral. Não apenas pelo próprio paciente, mas, também, pelas pessoas que estão no seu círculo de convivência. Ousaria dizer que a dor não é facilmente entendível. Mas, foi justamente estas duplicidades, que chamarei aqui de “antagonias”, que me encorajaram a pesquisar o tema, usando-o como guia para o desenvolvimento da minha linguagem artística. E é exatamente isso que pretendo demonstrar em minha obra.
Busco com esta escolha criticar não só o peso que as aparências podem ter nas vidas das pessoas, mas, igualmente, os julgamentos pré-concebidos que, infelizmente, ainda existem sobre o outro. Neste conjunto de obras, portanto, busco retratar a minha percepção de mundo, ainda que de maneira simbólica, no que tange ao pré-conceito e à incompreensão por parte da sociedade, em relação às pessoas que convivem com a dor crônica.
 Penso que tais atitudes ocorrem não só devido à falta de informação em relação a tais enfermidades, mas, ainda, por conta do hábito cultural – ou, mesmo, da própria natureza humana – de julgar ou estigmatizar pessoas levando-se em conta características de cunho estético-visual, como, por exemplo, beleza/feiura, juventude/velhice, magreza/obesidade, normalidade/loucura. Ou seja, trata-se de um hábito comum ao homem: levar-se em conta apenas o exterior das pessoas.
Diante disso, cabe o questionamento: quem é capaz de “ver” a dor?
Muitas vezes, nos casos de pacientes com dor crônica, não há nenhum indício físico ou lesão que a indique, como no caso da fibromialgia, cujo difícil diagnóstico se dá por meio de exclusão, ou seja, após o descarte de todas as outras possíveis doenças.   

A presença de 11 dos 18 pontos [de dor] padronizados tem valor para fins de classificação, entretanto, de acordo com Smythe, Buskila e Gladman (1991), em casos individuais, pacientes com menos de 11 pontos dolorosos poderiam ser considerados fibromiálgicos desde que outros sintomas e sinais sugestivos estivessem presentes. Outros achados do exame físico incluem o espasmo muscular localizado, referidos como nódulos, a sensibilidade cutânea ao pregueamento (alodínia) ou dermografismo, após compressão local. A sensibilidade ao frio também pode estar presente e manifestar-se como "cutis marmorata" em especial nos membros inferiores (WOLFE et al., 1990). Os exames laboratoriais e o estudo radiológico são normais e, mesmo quando alterados, não excluem o diagnóstico de fibromialgia, uma vez que esta pode ocorrer em associação a artropatias inflamatórias, a síndromes cervicais ou lombares, a colagenoses sistêmicas, à síndrome de Lyme e a tireoidopatias (WOLFE et al., 1990). Cerca de 10% dos pacientes apresentam positividade do FAN em baixos títulos (Goldenberg, 1989).” (FIBROMIALGIA – APSEN FARMACÊUTICA, 2012).

             Cabe aqui também relatar o que Fleming (2003), psiquiatra da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, assinala. Ela diz que a dor é um dado fundador na espécie humana e está ligada à cultura, à arte, à religião e a todas as outras formas de simbolização para transformar as vivências humanas geradoras de sofrimento de modo a lhes dar sentido. A função biológica da dor é a proteção contra a automutilação, defensiva e útil, mas, em certos casos, é a doença em si, exigindo alivio e tratamento.
A partir de todas estas informações é possível supor quantas situações antagônicas e dúplices o paciente com dor crônica tem de ser capaz de vivenciar. Isso pode ser constatado desde a fase inicial, com a complexa busca pelo diagnóstico, passando pela sua própria aceitação e, posteriormente, mas não menos importante, as dificuldades decorrentes nos relacionamentos sociais do paciente.
Em vista disso, torna-se evidente perceber que estes pacientes terão dificuldades de inserção na sociedade, de um modo geral, considerando que a enfermidade não tem cura, de forma que haverá necessidade de aprender a executar as atividades cotidianas mesmo com a dor constante.
O maior entrave dos portadores de fibromialgia não é a dor, mas o preconceito, pois, trata-se de um sujeito que foge aos “padrões de normalidade”. Afinal, para nossa sociedade é quase inconcebível supor que um indivíduo belo, aparentando juventude e vitalidade, possa estar sentindo dores atrozes em seu corpo. E, ainda, como seria possível este mesmo indivíduo executar suas tarefas rotineiras sentindo tais dores, quase ininterruptamente, sem, no entanto deixar de fazê-las?
 Mais uma vez Fleming (2003) nos esclarece dizendo que a atitude em face da dor e os comportamentos de resposta variam conforme a condição social e cultural, conforme a historia de vida e a personalidade de cada indivíduo. Esta pressupõe organizações psíquicas internas e modalidades específicas de lidar com a dor, que pode ir da capacidade de contê-la mentalmente, de elaborá-la, da necessidade de expulsá-la, de negá-la, de desprezá-la. É uma experiência ao mesmo tempo universal e singular.
Acrescento ainda que tais atitudes advêm de ambos os lados: tanto por parte de quem sente a dor, quanto por parte de quem convive com este indivíduo.  Cabe ressaltar que estas circunstâncias estão embasadas, não apenas na literatura médica, mas sob a óptica de quem vivencia estas experiências, antagônicas, dúplices e complexas.
 Em vista disso, adotei o tema “dor”, como forma de nortear o meu processo criador. Já que estou convencida de ser esta uma fonte inesgotável a ser explorada, tendo em vista o longo período de experiências e reflexões quanto ao assunto.  Podemos observar essa temática em alguns artistas dentro da História da Arte. Cabe aqui ressaltar que, obviamente, cada artista abordou o tema de acordo com sua própria linguagem e visão de mundo individuais, que não necessariamente compactuo, como Frida Khallo, Nazareth Pacheco, van Gogh, Aleijadinho, Renoir, Goya.

O Processo Criador

“(...) Este reconhecimento dos interesses está associado ao desejo de se construir um imaginário, pois é do artista a escolha de quais percepções que passam a se adequar ao seu vocabulário plástico.”
Maria do Céu Oliveira


 Tal como Maria do Céu, Vygotsky (1987, apud SALLES, 1998) também afirma que a experiência é o material que fundamenta a fantasia. Possivelmente, devido ao fato de a atividade criadora encontrar-se em relação direta com a riqueza e a variedade de experiências acumuladas pelo homem.
Em busca de meu vocabulário plástico, de 2010 até a presente data, passei a compilar imagens que, de alguma maneira, me tocavam ou chamavam minha a atenção, a fim de construir e de solidificar o meu próprio universo. A estas imagens denominarei “mapa iconográfico”, tal qual descreve Metzler (2011, p.120):  “bombardeio-me de imagens, seja folheando livros, seja consultando as que coleciono da internet. Às vezes passo dias olhando compulsivamente e nada acontece (...).”
Nessa construção de meu mapa iconográfico, transitei por inúmeras áreas e visualidades: literatura, cinema, ilustração, design, moda, teatro, criação de figurino, dança, fotografia, além, por evidente, das artes plásticas propriamente ditas, como pintura, desenho e gravuras. A respeito de como se dá essa construção de linguagem entre os artistas, Oliveira (1996, p. 122) também relatou suas percepções a partir das entrevistas que fez com os gravadores Arnaldo Bataglini, Cláudio Mubarac, Ermelindo Nadin, Luis Armando Bagolin, Marco Buti, Mário Gruber e Renina Katz.

Este canal de percepções não está restrito ao campo visual, mas à memória de todos os sentidos do corpo agem sobre a matéria. Imagens e recordações de fatos há muito passados, instantes imediatamente percebidos e a manipulação da técnica que encharcam os olhos do artista, são por assim dizer, armazenados no corpo e, quando solicitados, submergidas que estão por outras imagens, veem à tona impregnadas de sentidos impossíveis de serem separadas.

            Além disso, Salles (1998, p.88) também afirma que o processo criativo deve ser observado sob o ponto de vista de sua continuidade, pois coloca os gestos criadores em uma cadeia de relações, estreitamente ligadas, em que esboços, anotações, filmes assistidos, cenas relembradas, livros anotados, tudo tem o mesmo valor para o pesquisador interessado em apreender o ato criador. Assim, fui gradativamente construindo este universo, ou melhor, dizendo, meu mapa iconográfico, que hoje me vejo mergulhada e que ora o apresento.
 Concomitantemente a esta etapa em que compilei centenas de imagens para meu “mapa iconográfico”, também registrei, em cinco cadernos, todas as ideias e impressões que foram surgindo no período. São escritos, rabiscos e alguns poemas que contêm grande carga emotiva. A respeito da utilidade dessas anotações, vejamos o que diz estudioso do assunto:

Estes cadernos de notas que faço habitualmente, (...) não são obras de arte, mas registros dessa individualidade, uma espécie de circunscrição de imagens que por alguma razão me tocaram. (...). Nesta tarefa de unir o que  antes não era unido, tenho a pretensão de, sentado à minha mesa com uma tesoura na mão, embarcar desarmado na descoberta do mundo. (BARAVELLI, 1991, apud SALLES, 1998, p. 124) 

Ao iniciar a disciplina de Ateliê II, selecionei, para apresentação inicial, alguns destes desenhos, com seus respectivos poemas, contidos em meus diários. Todos feitos em papel de cor creme, em grafite, de diferentes gradações. Nesta fase, alguns desenhos apresentavam cor em apenas alguns pontos “estratégicos” da imagem. Esta cor, para mim, seria a representação, quase literal, da dor que estivera sentindo no momento em que o desenho fora executado. As imagens possuíam os cantos arredondados, lembrando cartões antigos (Figura 3).
Outra característica que se repetia muito durante esta fase eram as molduras e arabescos, feitos a bico-de-pena, em torno da figura (mais uma inspiração dos cartões antigos), ora circunscritos ao espaço do desenho, ora o invadindo. Estas últimas, segundo professor Maravalhas, atrapalhavam a leitura da imagem ).  
No entanto, por ocasião desta apresentação inicial, foram feitas críticas relevantes: os arabescos, por vezes, ficavam imperfeitos, uma vez que eram feitos a mão e com o bico de pena. Além disso, como se agregavam poemas a esses desenhos (escritos em caligrafia elaborada), estaria havendo prejuízo à leitura dos desenhos propriamente ditos ).
  Portanto, ambas as tentativas de criar molduras elaboradas, seja usando apenas arabescos, seja usando a própria caligrafia para compô-la, foram frustradas. Mas, com a ajuda dos colegas e do professor Nelson, pude constatar que, daquela forma, o texto atrapalhava a leitura da imagem: seria preciso repensar o uso do texto juntamente com a imagem. Além disso, fui aconselhada a trabalhar mais o meu desenho, destacando mais os tons de cinza e preto, bem como a experimentar outros papéis, outros traços, enfim, já que se tratava de desenhos retirados de meus diários de artista.
  Após esta primeira apresentação, segui refletindo sobre o texto juntamente com a imagem, de forma que aquele não a prejudicasse, bem como outras técnicas para melhorar meu desenho.  Para solucionar o problema do texto com a imagem, resolvi confeccionar uma espécie de scrapbook, ou álbum, contendo diversas páginas decoradas com arabescos (estas, porém, compradas em papelaria) onde ficavam os desenhos .
Entre as páginas, intercalei papel vegetal delicado, em que os textos-poemas foram escritos, sobrepondo-se, assim, à imagem. A intenção era a de proporcionar ao público um suporte que lembrasse os meus diários .
  No entanto, esta foi mais uma tentativa frustrada de unir os poemas com as imagens, pois se constatou, nesta segunda apresentação, que as imagens “desapareceram” em meio a tantas informações. A partir das críticas dos colegas e do professor, resolvi abolir todos estes elementos “acessórios” aos meus desenhos, deixando de lado os arabescos, tanto em forma de moldura decorativa, quanto em forma de caligrafia. Da mesma forma, aboli também o texto ou poema. A partir de então, passei a me concentrar exclusivamente à criação da imagem.
Estas críticas foram imensamente valiosas para meu processo criativo, pois me fizeram perceber o quanto precisava focar o trabalho no desenho, a fim de passar a mensagem desejada, sem que precisasse usar de outros subterfúgios, de tal forma que a imagem pudesse “falar por si”. Não sem motivos, o gravador Mário Gruber ensina que “a obra tem que se impor por ela mesma” (OLIVEIRA, 1996, p. 91). Após sucessivas experiências, dei-me conta, enfim, do significado de tal ensinamento. 

Simbologias – Construindo a Linguagem

“Tomando em sua mão algumas sobras do mundo, o homem pode inventar um novo mundo que é todo dele. A arte começa pela transmutação e continua pela metamorfose.”
Focillon


 A partir destas questões levantadas pelo professor Nelson e pelos colegas em relação à junção de texto e imagem, como subterfúgio, do uso de elementos decorativos, como as molduras de arabescos, bem como a busca por um desenho melhor elaborado, passei por um crucial processo de reflexão e amadurecimento. Somando-se a isso, intensifiquei a coleta de imagens e referências, como inspiração para clarificar a minha própria obra.
    A partir dessas reflexões, fui percebendo que muitos daqueles desenhos antigos continham, em si, muita força, já que se tratava de imagens do meu inconsciente. Poderiam, portanto, servir de base para trabalhos futuros, em calcogravura, por exemplo. Além disso, também notei que, nas imagens, havia alguns “símbolos” que se repetiam nos meus desenhos. Assim, fui buscar mais imagens, em livros e na internet, que pudessem enriquecer esse “arsenal” de signos: fotografias, ilustrações de objetos, utensílios e coisas de nosso cotidiano e até animais e insetos, que faziam sentido nesse contexto de construção de um universo próprio. Então, fui me apropriando dessas imagens, que, posteriormente, vieram a compor o que hoje é meu repertório plástico e, conseqüentemente, fazem parte de minha linguagem.
São simbologias, formas de representações plásticas de tudo aquilo que povoa minha mente. O antropólogo francês Gilbert Durand (1988, apud SANT’ANNA; PATRÃO, s/d, p. 1) define símbolo como sendo a “epifania de um mistério”.  Além dele, Baudelaire, o famoso teórico de arte francês do início século XX, disse o seguinte a respeito dos símbolos: “todo universo visível é apenas um armazém de imagens e signos, a que a imaginação tem de digerir e transformar” (CHIPP, 1996, p. 46).
Dessa forma, diante do verdadeiro mundo que se descortinava, procurei explorar as duplicidades, as “antagonias” do tema escolhido, ou seja: interessa-me que em minha obra a beleza “conviva”, pacificamente, com a feiura, da mesma forma que com a repulsa; ou que a singeleza apareça lado a lado com o grotesco; que a melancolia, da mesma forma, seja pareada com a fantasia. 
A partir de então, o tema, em si, deixou de ser minha preocupação e passei a perseguir, unicamente, a minha identidade ou linguagem enquanto artista, o que Suassuna (1975, p.266) chama de forma: “é ela que faz com que distingamos no meio de muitas obras de vários artistas aparentados, aquela marca pessoal que o diferencia de todos”, acrescentando, ainda, que, no campo da forma, a única regra soberana deve ser aquela ditada pela intuição e pela imaginação do próprio artista.
            Além de Suassuna, Gullar diz o seguinte sobre a linguagem artística: “a linguagem na arte não seria uma tentativa de explicação do mundo, mas de assimilação de seu enigma. Transformando em linguagem pictórica, o mundo (...)”. E, acrescenta, dizendo que a linguagem não seria apenas as imagens que o artista utiliza, mas, independentemente da função figurativa, também a cor, a luz, a linha, a textura, a transparência, etc. Todos estes elementos, diz ele, participam da linguagem pictórica como outros tantos valores semânticos, integrados, portanto na expressão estética, sendo parte do tecido significativo da obra.
 A partir dai, podemos deduzir que a concepção artística se realiza concomitantemente em vários planos. Desde a sua concepção, definição, tema e/ou assunto, até o jogo de luz e sombra, cor e não cor, texturas, planos, linhas, materiais e técnicas que irão seguir ou desaparecer ao longo do caminho, para fazer surgir a obra final. Não há dúvidas de que cada etapa da trajetória percorrida pelo artista até alcançar a sua própria linguagem é de extrema importância, não só para sua autoafirmação, mas para qualidade da obra, pois a confluência de todos esses fatores, somados ao tempo necessário para o amadurecimento das ideias, bem como à larga pesquisa e reflexão sobre a obra, tornam-se “visíveis” ao público no instante da contemplação da obra de arte. Uma obra bem refletida por seu criador é capaz de ressoar no público e de gerar uma série de questionamentos.
Ferreira Gullar afirma, ainda, que a realização da obra de arte abre sempre a possibilidade de uma ampliação do universo significativo do artista, ou seja, a linguagem contém a capacidade de sempre gerar significados novos. Marcel Duchamp designou isso de “coeficiente artístico”, ou seja, seria uma relação aritmética entre aquilo que permanece inexpressivo na obra, embora intencionado pelo artista, e aquilo que é expresso não intencionalmente (apud BATTCOCK, 2004).
Pude perceber esse “coeficiente artístico” durante a apresentação de minha obra (Figura 8), em que cada pessoa que a observou (colegas, professores, familiares, amigos) relatou uma percepção e uma interpretação diferente em relação à obra. Muitas até impensadas por mim no instante da criação, ao menos conscientemente. Considero-a, portanto, a minha melhor criação, pois creio que há muito a ser desvendado, não só pelo público, mas também por mim.
Segundo Oliveira (1996, p.26), “o repertório simbólico acumulado pela história pode servir ao artista, sendo este capacitado para percebê-lo. O artista não cria símbolos, dele extrai uma leitura que coincide com uma imagem mental, uma lembrança, uma sensação, um acaso.” No caso desta obra citada acima, ela reflete uma sensação corriqueira: a vontade de pendurar as pernas em um cabide depois de um dia cheio, a fim de expulsar a dor, deixando sobre um confortável divã (espaço em que habitualmente se costuma refletir questões existenciais) apenas o resto do corpo e da mente, deixando livre o pensamento, representado pela cabeça de polvo.
Outro exemplo do uso dessas simbologias em minha obra é o cabide-gaiola (Figura 9), do qual se trata de uma nítida representação da sensação de impotência e aprisionamento que o ser humano experimenta diante da dor física. E esse significado ganha ainda mais força quando se percebe que esta gaiola ocupa o lugar das pernas da menina. Além disso, a personagem é uma bailarina, cujo penteado lembra um ninho de pássaros, com seus galhos enfiados, mas o pássaro está ausente. A referência para este penteado foi a moda do século XVII, em que as damas da sociedade usavam este tipo de penteado como manifestação de poder aristocrático. Além disso, a moça se encontra seminua, vestida apenas com o chamado “Tu-tu”, ou saia do ballet, e um rufo no pescoço. Os seios estão a mostra e a mão sobre o rosto denotam certa fragilidade ou sensação de vergonha. Além disso, seu tronco está todo perfurado com anilhas, por onde cruzam delicadas fitas, como se fosse mero adorno de seu figurino. 

É possível também perceber objetos perfuro-cortantes em outras obras, como anzóis, arames-farpados, pregos, espinhos (Figuras 10 e 11). Tudo isso aparece em minha obra na intenção de apenas reorganizar e decodificar aquilo que estava submergido em meu interior. “O artista reorganiza este vasto repertório unindo a isto uma percepção voltada para a sua visão de mundo. Ai está representando o papel do artista como criador de vocábulos e decodificador de símbolos”, diz Oliveira (1996, p 122).
No entanto, não pretendo com isso impor ao público esta mesma leitura, ou decodificação. Pelo contrário, encanta-me o fato da obra conter o seu mistério, gerar certa inquietação e até mesmo curiosidade no observador. Eis ai, mais uma vez, o coeficiente artístico de Duchamp:

A realização da obra abre sempre a possibilidade de uma ampliação desse universo significativo. E isso é uma característica das linguagens: Elas contêm potencialmente a capacidade de gerar significados novos. (...) Isso ocorre por que dentro desse universo, se cria sua própria linguagem, seus próprios limites em função dos quais as tensões “vocabulares” geram significado nos outros. Do contrário a obra seria “acadêmica”, simples uso mecânico, burocrático da linguagem pictórica existente (....)é por construir uma linguagem que a pintura faculta ao artista possibilidades antes insuspeitadas de atuar sobre a  imagem do mundo e de, metaforicamente, transformá-la, recriá-la. Ao fazê-lo o artista se constrói a si mesmo, objetiva seu mundo imaginário e o torna socialmente atuante. Isso ocorre por que a linguagem possibilita não apenas a descoberta dos significados nela inerentes, como também o acúmulo de experiências fundadora de sentido. (OLIVEIRA, 1996, p. 127)

Meus símbolos ora aparecem como representação da dor física, gerando alguma tensão, como no caso dos objetos perfuro-cortantes ou cordas, ora aparecem apenas para representar alguma sensação psíquica, na forma de bichos.  Como exemplo do primeiro caso, cito a gravura das cordas que puxam o corpo da bailarina e da mulher em todas as direções (Figuras 12 e 13) ou, no caso da linha que desce do teto, em que carrega um grosseiro anzol do qual perfura as costas da moça, curvada ao chão em posição fetal (Figura 10, acima), ou, então, como na Figura 14 em que uma faca aparece encravada na cabeça de uma singela moça vestida com rufos. No entanto, ela posa, elegantemente, para o retrato, indiferentemente à dor que supostamente estaria sentindo.
 Além dos objetos, há também muitos bichos. Alguns são realistas, como no caso da aranha caranguejeira que aparece na Figura 15. Já outros foram apenas inspirados em animais que existem na natureza, porém recriados, a fim de dar um toque fantástico à pintura, como é o caso da taturana que aparece na Figura 16.

Isso também se repete na imagem (Figura 11, acima) em que as lesmas (bicho do qual considero o mais asqueroso) ocupam o lugar de flores, adornando o chapéu da moça de semblante melancólico. Nesta mesma gravura é possível observar outro objeto pontiagudo que se repete em meus trabalhos: o prego. Aqui, eles aparecem perfurando o corpo da menina, no entanto, é como se fizessem parte de seu figurino à moda do século XIX. Ela, por sua vez, se mostra indiferente à suposta dor que estes lhe causariam.
 Em todos os três casos, os animais, apesar de serem peçonhentos e/ou nojentos, estão postos nas cabeças das moças tal como um adereço ou um chapéu feminino à moda antiga (referência no século XIX).  Cabe ressaltar, aqui, que todos os rostos ou corpos representados são frutos de minha imaginação, não se trata, portanto, de retratos ou de autorretratos. Procuro com isso, recriar meus próprios “ideais de beleza” e levantar questionamentos acerca disso, despertando a curiosidade no público, já que as expressões faciais dos personagens, em todos os casos, não condizem com o desconforto, dor ou medo que, de fato, sentiriam se estivessem em uma situação real.
Além desses animais asquerosos, por vezes, também aparecem alguns seres alados, como a libélula que pousa sobre a faca da Figura 13, acima, ou os pássaros que aparecem na Figura 10, acima. Em ambos os casos, eles estão livres e apenas repousam na cena. Já na Figura 9, acima, há apenas a sugestão de que o seu ninho é no cabelo da personagem, mas ele está ausente. Estes seres alados, em especial, o pássaro, representam-me uma forte carga simbólica, ressaltando-se que todos os símbolos aqui explorados tem alguma conexão com as sensações por mim sentidas diante da dor.
Somando-se a isso, cabe também chamar a atenção para o formato oval que adotei para representar todas as figuras. Tanto as pinturas em pastel quanto as gravuras, todas estão contidas, aprisionadas, dentro de uma elipse, com exceção da pintura representada na Figura 15, em que troquei a elipse pelo formato de uma fechadura.  
A referência para esse tipo de formado foi a rudimentar fotografia do início do século XX, quando o formato oval ou arredondado decorria do uso da prata para a formação das imagens. Em relação às medidas adotadas nos trabalhos, houve uma maior variação especialmente nas pinturas em pastel em função unicamente do caráter de experimentação, uma vez que, nesta fase, ainda não tinha clareza do melhor tamanho a se adotar.
Já em relação às calcogravuras, apesar de, até então, sempre ter optado por medidas maiores, como 15x15cm ou 10x10cm, neste conjunto de obras preferi usar medidas reduzidas, mesmo sabendo que tal decisão iria aumentar ainda mais a complexidade exigida em todas as etapas do processo de criação, gravação e impressão da gravura em metal. As gravuras têm, em média, 10x6,5cm, igualmente, em formato oval.
Ao contrário disso, agradei-me mais trabalhar com a medida A3 para os trabalhos em pastel, considerando que julgo desconfortável trabalhar os detalhes da imagem usando um papel muito grande, como, por exemplo, o A2 usado na pintura representada na Figura 15. O contrário também ocorre, ou seja, percebi que o nível apurado de detalhamento quase realístico que busco, especialmente na pintura em pastel, comprometeu-se quando usei a medida A4.

A Materialidade da Imagem: O Pó e o Óleo.

“Creio que você só pode ter um discurso sobre seu trabalho se ele é decorrência dos acontecimentos da sua própria vida. Por isso antes de falar de técnica deve-se falar de intenção da imagem. A escolha de certo meio, por afinidade, leva ao domínio do material e da técnica.”
Ermelindo Jardim

A respeito da materialidade adotada, elegi, por afinidade, a calcogravura (ou gravura em metal) e a pintura em pastel a seco. Para criação das gravuras, em muitos casos, aproveitei alguns dos desenhos, feitos a grafite – apresentados na primeira exposição em sala de aula – como projetos. Obviamente que foi necessário repensar a respeito da luz e das sobras, da mesma forma que nas tonalidades de cinzas, pretos e brancos da imagem. Exemplo disso são as gravuras representadas nas Figuras 12 e 13.
 Sobre o uso do desenho como projeto para gravuras, o gravador Mário Gruber diz que, ao tentarmos definir o espaço no desenho, é indubitável recair-se na lei objetiva comentada por Cezanne que diz “ ‘tudo que é visível apóia-se em duas leis, na visão: a lei dos contrastes e a lei das passagens’. A lei do contraste diz: ‘tudo que determina um plano é o ângulo de incisão, onde um lado é escuro e outro é claro’.” (OLIVEIRA, 1996, p. 86).    Deduz-se que isso nada mais é do que a luz e a sombra buscados na gravura, por exemplo.
Em contrapartida, Gruber acrescenta que, ao fazer-se um ponto em uma superfície, ele só se torna visível porque há uma borda escura e uma clara. A lei das superfície diz que se ampliarmos um ponto branco, veremos que  o branco não é totalmente branco, pois não existe esta uniformidade teoricamente perfeita. A superfície tem uma série de nuances, que um olho apurado é capaz de perceber uma serie de gradações tonais. Tudo o que é visível aos olhos está inserido nestas duas leis. O desenho, segundo Gruber, é próprio para traduzir certas coisas que o homem elaborará mais tarde.
No processo de execução das gravuras, utilizei diversas técnicas, tanto as indiretas (água-forte, relevo seco e água-tinta) como as diretas (ponta seca, buril e maneira negra, sendo esta inacabada). Especificamente em relação à água-tinta, procurei experimentar outros métodos pouco tradicionais além do já conhecido, usando o pó de breu. Nestes experimentos, usei tinta aquarela em tubo, pasta de nanquim com açúcar e betume, pasta de pó de gelatina com açúcar, sal grosso e sal fino. Todas as técnicas foram usadas tanto individual quanto conjuntamente, na mesma chapa, de acordo com o que se pretendia alcançar na imagem. E, ainda, entre as duas categorias (diretas e indiretas), pode-se citar a técnica francesa denominada Chine à collé, que nada mais é do que a colagem de papel colorido sobre um determinado ponto da imagem que se deseja dar cor. Esta técnica foi usada nas Figuras 17, 18 e 19.
Já na pintura em pastel a seco, utilizei tanto lápis (para detalhes) quanto bastões (para áreas maiores), sobre papel Mi-Teintes ou papel de aquarela de diferentes gramaturas e grãos.
Relacionando as palavras de Gruber com estas duas abordagens técnicas – gravura em metal e pintura em pastel –, pode-se dizer que a pintura é feita de superfícies tonais, já a gravura é feita de linhas. Ambas, no entanto, se prestam de maneira complementar à tradução de meu imaginário. Além disso, o uso destas duas abordagens também se justifica pelo fato de que matéria é tudo aquilo de que é feita a obra e aquilo que auxilia o artista a dar corpo a sua obra. Portanto, o pó e o óleo, a superfície e a linha, ou seja, o pastel e a gravura se complementam, dialogam entre si, no meu fazer artístico.
Segundo a gravadora Fayga Ostrower (1978, apud SALLES, 1998, p. 69), “cada materialidade abrange certas possibilidades de ação e outras tantas impossibilidades. Se as vemos como libertadora para o curso criador, devem ser reconhecidas também como orientadoras, pois dentro das limitações, através delas, é que surgem sugestões para se prosseguir um trabalho e mesmo ampliá-lo em direções novas.”  É dessa forma que vejo a gravura em metal e a pintura a pastel: tudo aquilo que se torna inviável de executar em uma, torna-se possível fazê-lo por meio da outra técnica, havendo, assim, a complementariedade recíproca.
Isso ocorre não apenas no que se refere ao fazer artístico, mas, também, na linguagem. A calcogravura possibilita, por exemplo, explorar a imagem, usando apenas linhas, sob a ausência de cores. A partir desta imagem linear chego ao preto, ao branco e às gradações de cinzas. Interessa-me que as presenças da luz e da sombra se deem de forma intensa, dramática.  Além disso, agrada-me muito a prática do ofício. Esta parte “mais modesta” da arte, segundo Ariano Suassuna, porém de extrema importância na confecção da gravura. “Nesse campo, as regras são dogmáticas, universais, válidas e indiscutíveis para todos os artistas” (SUASSUNA, 1975), mas, que, quando interiorizado e apreendido verdadeiramente, o artista tem a impressão de “esquecê-lo” no momento da criação, sem tornar-se prisioneiro do ofício.
Gruber, mais uma vez, traduziu, com maestria, o que sinto em relação à gravura: “a gravura não perdoa, sempre foi para mim um laboratório de denúncia. Tinha de ser pequena, e preto e branco. Os pretos de Rembrandt são inatingíveis até hoje.” (OLIVEIRA, 1996, p. 88). A gravura, por ser também considerada um ofício, exige do artista extrema disciplina e persistência para alcançar os “pretos inatingíveis”, por exemplo. Além disso, ela exige uma reflexão prévia, a fim de saber exatamente onde se deve buscar a luz ou a sombra que darão expressão à obra.
No entanto há vezes em que a gravura fala a sua “língua própria”. Inúmeras vezes, o artista se depara com o acaso, com o erro. E nesta hora é preciso ter sabedoria para assimilá-lo e assumi-lo na imagem. Isso muitas vezes gera outra imagem, ainda mais interessante do que aquela projetada anteriormente. O que para muitos é considerado um transtorno desagradável, para mim, é o que mais me encanta na gravura em metal.
A cor na pintura – não que seja impossível explorar a cor na gravura, como é o caso da técnica de chine a collé ou, simplesmente, a impressão em cores – e a superfície criadas com o pastel me possibilitam explorar detalhes e expressões que na gravura ficariam extremamente “duras”, se realizados apenas com linhas ou mesmo com a água-tinta (que possibilita certa superfície). Exemplo disso são as expressões faciais, a pele e os olhos, trabalhados minuciosamente, beirando o realismo, que busco explorar na pintura em pastel.
Na gravura, porém, tal nível de detalhes e delicadeza tonal é praticamente impraticável, pois o acaso tem um importante papel no resultado final da imagem. A esse respeito, o gravador Marco Buti assevera:

Acho muito delicada essa transposição do mental para o material. Você deve encontrar um meio para uma detrminda imagem se concretizar.Chego a pensar na adequação do papel e da tinta, que grau de aderência esta tinta, que gerou aderência esta tinta terá sobre a superfície da chapa, que luz esta gravura precisa.Tudo isso tem que estar bem dosado:é estrutural e significativo para mim. É algo que exige um rigor extremo:você tem que pensar em absolutamente tudo, não há meio termo.(...). No entanto a imagem que surge é sempre inesperada. Apesar de projetada, não pode ser determinada de antemão. (apud OLIVEIRA, 1996, p. 64-65).  

                   Na pintura em pastel, a técnica que uso para buscar essa delicadeza tonal é o esfumado, usando os dedos, cotonetes ou esfuminhos. Isso me possibilita no caso dos retratos, aproximar-me bem mais de um rosto realista, embora a imagem seja completamente fantástica e irreal (Figuras 8, 9, 14 e 15). Gosto também de finalizar a imagem com pequenos toques de cor, aqui e ali. No entanto, ambas partem sempre de um desenho ou esboço feito a lápis, projetados previamente, para serem explorados nesta ou naquela técnica específica.
 Como já disse, apesar de parecerem linguagens distintas, para mim, ambas se completam. Tudo o que se mostra “resistente” na gravura, na pintura em pastel torna-se maleável e vice-versa. Nas ilustrativas palavras de Miró (1989, p. 32 apud SALLES, 1998, p. 71),  “o que me impulsiona é dominar essa resistência” e, segundo Kurosawa (1990, p. 252, apud SALLES, 1998, p. 69),  “esse contato com os limites da matéria faz parte do processo de conhecimento da matéria. Cada matéria, assim pede comportamento e disciplina específicos.” Creio que os dizeres de ambos os autores resumem tudo o que busco com esta  série de obras, de materialidades diferentes.

O Fantástico

 “As imagens da fantasia prestam também como linguagem interior a nossos sentimentos, selecionando determinados elementos da realidade e combinando-os de tal maneira que responda a nosso estado interior de ânimo.”
Akal

A fantasia permeia a minha obra, desde a sua gênese, nos diários de artista. Os desenhos em grafite feitos durante o exercício proposto pelo professor Maravalhas já continham esta característica, mesmo que de maneira rudimentar. Creio que esta seja a melhor maneira de expressar a dor – temática tão ambígua e de difícil compreensão – sem que pareça didático ou que se recaia em vitimização, o que definitivamente não é o meu objetivo.
Durante este processo de desenvolvimento de linguagem, enquanto buscava referências iconográficas, pude constatar que minhas obras, especialmente as pinturas em pastel, encontram grande afinidade com o Realismo Fantástico, ou Realismo Mágico. Além disso, também pude perceber que fantasia é capaz de proporcionar inumeráveis interpretações, convidando o público a imergir na obra e, com isso, gerar certa ressonância nele.
Ao observar a obra fantástica, o observador é compelido a um verdadeiro “mergulho” em seu interior, e conseqüentemente, no interior da mente de seu criador. Não há dúvidas de que fantasia é capaz de proporcionar ao observador da obra impressões tão profundas, levando-o à reflexão e à própria interpretação.
Em relação à interpretação da obra, Pastore (2009, p. 23) afirma ser esta uma interpretação psicanalítica e que é sabido que ela não é apenas a revelação de um sentido oculto, mas a criação, pela dupla de um sentido ausente e a invenção de um sentido que permaneceu em sofrimento. “Criar é abrir descontinuidades no fluxo da linguagem, proporcionando o assombro e instaurando uma imagem inédita possível, uma significação inédita possível.”
            É como se o público participasse ativamente da obra fantástica, atribuindo-as novo significado e desvendando os seus mistérios. E é justamente este misto de fascínio e mistério que me fez desenvolver minhas obras nesta linguagem. René Magrite, artista surrealista e um dos precursores da Arte Fantástica, também exalta este mistério necessário à obra de arte, conforme evidencia a célebre frase a ele atribuída: “a arte evoca o mistério sem o qual o mundo não existiria”.
Além dele, Bachelard (1988, apud SALLES, 1998, p. 91), também se referiu à Arte Fantástica, mais especificamente, ao artista que a produz, com as seguintes palavras: “o artista, nessa perspectiva, está sendo visto como um explorador da existência. Formas e cores reais são absorvidas pelo mundo imaginário”.
O Realismo Fantástico começou na segunda metade do século XX, primeiramente, entre os escritores latino-americanos, como José Saramago e J.Borges. Surgiram então, grandes expoentes como o americano Edgar Allan Poe. Apesar de a Arte Fantástica possuir algumas semelhanças com o Surrealismo – o onirismo, por exemplo – não se pode afirmar que compactuavam das mesmas ideias. Da mesma forma que não se pode afirmar que o Realismo Fantástico fora um movimento dentro da história da arte, uma vez que não possuíam manifestos, não tinham cunho social-político e, ainda, os pintores trabalhavam de maneira individual. 
O Realismo Fantástico perdura até os dias atuais, em todas as Artes. É possível notar um grande número de pintores, espalhados pelo mundo, como David Bowers, Frank Kortan, Elie Tiunine, Andrew Gonzalez, Bruno di Maio, Rob Gonsalvez, Michael Parkes, Dominic Rose, Julie Heffernan, Travis Lowie, Istevan Sandorf.
Segundo Schenberg (s/d),  “o Realismo Fantástico é uma das formas  mais eficazes de apreensão do mundo contemporâneo, e de sua crítica no campo da arte. Encontramo-lo no cinema de Felini, Resnais e Antonioni, assim como nos bons filmes de ficção científica e na literatura de J. Borges e outros escritores.”  Além disso, segundo esse autor, o Realismo Fantástico leva em conta o fato de que a consciência constitui apenas uma pequena parte da vida mental e que pode haver caminhos de apreensão da realidade através do inconsciente, tal qual acontecera em meu processo criativo.
De fato, somente se tornou possível encontrar o “meu universo” a partir do momento em que dei voz ao meu inconsciente, permitindo que ele me indicasse o caminho. No entanto, para Freud o artista deve sempre encontrar o caminho de retorno à realidade, pois ao dar forma aos seus devaneios, possibilita que outros compartilhem do prazer que se pode obter das fantasias inconscientes ali contidas. E faz a seguinte afirmação: “a existência de um caminho de retorno da fantasia à realidade – isto é, o caminho da arte.” (FREUD, 1916-1917, apud PASTORE, 2009, p. 22)

Para Concluir

 “O processo criador é um percurso com um objetivo a atingir, um mistério a penetrar.”
Pablo Picasso

 Neste trabalho busquei fazer um apanhado de todos os fatos que considero relevantes ao desenvolvimento de minha linguagem artística. Para isso precisei fazer um verdadeiro mergulho altruísta, buscando encontrar-me, refletir e compreender todo esse processo, além de pesquisar muito, a fim de encontrar teóricos e estudiosos que melhor explicassem cada passo de meu processo criativo.
O primeiro passo para a construção dessa linguagem, foi a “descoberta” do tema: a dor. Assunto por mim tantas vezes evitado devido aos fatos já apresentados. No entanto, considero esta uma etapa bastante relevante, justamente por ser o ponto de partida para o desenvolvimento desse trabalho prático, que ora apresento. Ademais, essa experiência favoreceu não só um incrível autoconhecimento, mas também a observação dos outros em relação à temática escolhida.
 Foi a partir dessas sensações percebidas por mim que minha linguagem passou a ser evidenciada. Nesta fase, precisei abandonar-me um pouco, com o intuito de encontrar o público e criar nele alguma ressonância. Pois, entendo que, uma vez alcançada a clareza a respeito da intencionalidade da obra, ela é capaz de sustentar-se. Dessa forma, o tema passou a ter pouca relevância, passei a considerar apenas as “antagonias” e duplicidades que ele me favorecia refletir. Interesso-me pelo fato de a obra causar estranheza ou curiosidade no público e, para isso, elegi a poética “fantástica” do imaginário para melhor expressar-me.
Por afinidade, escolhi as técnicas de pintura em pastel seco e a gravura em metal, pois entendo que há grande completude entre elas, não só em meu fazer artístico, mas também enquanto linguagem. Portanto, levando-se em conta todos os passos aqui apresentados, que compreendem este processo de construção da linguagem artística, não tenho dúvidas de que foi, e continuará sendo, uma experiência extremamente enriquecedora, não apenas no que tange a mim enquanto artista, mas, também, enquanto pessoa.
 Creio que esse processo se perpetuará em minha vida, visto que entendo que o artista necessita ora encontrar-se, ora perder-se, sucessivas vezes.  Assim, esta pesquisa que aqui se inicia continuará ocupando minha mente, por longos dias, ainda. Afinal, como bem diz May (1975), “criar é querer ser imortal”.

Referências

BACHELARD, G. A poética do devaneio, 1988. In: SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Fapesp/Annablume, 1998.

BARAVELLI, L. P. Sobre os meus cadernos de nota, 1991. In: SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Fapesp/Annablume, 1998. 

CHIPP, H. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

DUCHAMP, M. O Ato Criador. In: BATTCOCK, G. (Org.). A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 2004. cap. 5.

DURAND, G. A imaginação simbólica, 1988. In: SANT’ANNA, A. C. V.; PATRÃO, R. A. Mitologia e identidade artística: um estudo da presença de mitemas heroicos no discurso de Paulo Pasta e da crítica contemporânea. Ceart/Udesc: s/d. Disponível em: <http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/plasticas/Vargas%20-%20Renata.pdf>. Acesso em 28 jan. 2013.

FIBROMIALGIA – APSEN FARMACÊUTICA. Artigos: Diagnóstico. São Paulo: 2012 [?]. Disponível em: <http://www.fibromialgia.com.br/novosite/index.php?modulo=medicos_artigos&id_mat=25>. Acesso em 10 jan.2013.

FLEMING, M. Dor sem nome. Pensar o sofrimento. Porto: Afrontamento, 2003.

FREUD, S. O Inconsciente, 1915. In: PASTORE, J. A. D. Apresentação: A Arte do Inconsciente. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 61, n. 2, p. 20-24, 2009.

FREUD, S. Os caminhos da formação dos sintomas, 1916-1917. In: PASTORE, J. A. D. Apresentação: A Arte do Inconsciente. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 61, n. 2, p. 20-24, 2009.

KUROSAWA, A. Relato autobiográfico, 1990. In: SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Fapesp/Annablume, 1998.

METZLER, F. O que justifica a sua escolha pela pintura tradicional ?. In: COSTA, M. L. (Cur.). Pintura reprojetada. Brasília: Tribunal de Contas da União, 2011.

MIRÓ, J. A cor dos meus sonhos, 1980. . In: SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Fapesp/Annablume, 1998.

OLIVEIRA, M. C. D. A gravura e o processo de criação da imagem: um olhar no espelho. 1996. 182 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo.

OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação, 1978. In: SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Fapesp/Annablume, 1998.

PASTORE, J. A. D. Apresentação: A Arte do Inconsciente. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 61, n. 2, p. 20-24, 2009.

RILKE, J. M. Cartas a um jovem poeta, 1980. In: SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Fapesp/Annablume, 1998.  

SCHENBERG, M. Realismo Mágico, Realismo Fantástico e Surrealismo. Disponível em: <http://www.eca.usp.br/nucleos/cms/index.php?option=com_content&view=article&id=73:2010-02-24-16-27-35&catid=17:artigos-de-mario-shenberg&Itemid=15>. Acesso em 4 fev.2013.

SUASSUNA, A. Iniciação à estética. Recife: Universidade Federal de Pernambuco: 1975.

STEINBERG, L. A Arte Contemporânea e a Situação do seu Público. In: BATTCOCK, G. (Org.). A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 2004. cap. 20.

VYGOTSKY, L. I. Pensamento e linguagem, 1987. In: SALLES, C. A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Fapesp/Annablume, 1998. 


Referências Iconográficas


Realismo Fantástico

David Bowvers
Frank Kortan
Elie Tiunine
Andreu Gonzalez
Bruno di Maio
Mc Escher
Brad Noble
Michel Parkes
Dominic Rose
Larissa Moraes
Julieheffernan
Travis Lwie
Istvan Sandof
Jake Baddeley
Steven Kenni

Surrealismo

Salvador Dali
René Magritte
Frida Khalo
Ann Bachelier
Coltt Calascione
Tiffany Bozic
Jabaddeley
Georgio de Chirico

Surrealismo – Fotógrafos

Joyce Tenneson
Clarence Laughlin
Natalie Show
Man Ray
Paul Mitchell

Gravadores

Rambrandt
Gustavo Doré
Rubens Matuk
Carlos Scliar
Clênio Biancheti
Iberê Camargo
Babinski
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Rubens
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Gruber
Grassmann
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